Apaixonado por fotografia e estudioso do Santo Sudário, Dr. Anastácio encontra na Medicina uma maneira de refletir a gratidão que tem pela vida

 

A história do Hospital São José (HSJ) se confunde com a trajetória de um médico conhecido por seu perfil arrojado no trato com seus pacientes: Dr. Anastácio de Queiroz Sousa. Dos depoimentos de residentes de Medicina surpreendidos pela postura destemida do profissional à gratidão de pacientes que guardam bonitos relatos, o médico infectologista se destacou, ao longo das quase cinco décadas de carreira, por enfrentar desafios — desde os primeiros casos de Aids no Ceará até a atual pandemia de Covid-19. 

Para além do profissional que é reconhecido também como referência em administração hospitalar e gestão em saúde, há um homem de perfil observador, que encontra na fotografia uma ferramenta para registrar momentos da carreira e guardar paisagens por onde passou. Natural do município de Coreaú, Dr. Anastácio também carrega desde a infância a marca da religiosidade que, atualmente, se traduz também no interesse em pesquisar temas como o Santo Sudário. 

Na entrevista a seguir, Dr. Anastácio dialoga com Dra. Tânia Mara Coelho, diretora técnica do HSJ. Os dois dividiram percepções sobre a gestão da unidade médica da Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa) e sobre os aprendizados e obstáculos do novo coronavírus.

 

Dra. Tânia Mara Coelho – O que levou o senhor a escolher a Medicina como caminho de vida?

Dr. Anastácio Queiroz – Na realidade, a primeira vez que eu fiz vestibular tentei para Engenharia. No vestibular, tinha uma nota mínima na primeira prova, que era a de português. O concorrente tinha que tirar, pelo menos, a nota 5. Eu, que não tinha muita experiência, respondi só o que eu tinha certeza, aí tirei 4,6 e fui reprovado (risos). Na segunda vez, resolvi fazer Medicina, porque achava médico uma profissão interessante. Não tenho nenhum familiar médico, mas é aquela coisa que você não tem uma explicação muito clara, eu quis Medicina. Meu pai ficou até meio assim, ele queria um filho engenheiro...

Dra. Tânia – Com o que mais o senhor se identificou no Hospital São José? 

Dr. Anastácio Eu trabalhei no São José por muitos anos e eu me identifiquei muito com essa pesquisa com doença infecciosa. É impressionante. Sempre o paciente tem características diferentes. O São José sempre foi um hospital muito rico em patologias. Com a doença infecciosa, muitas pessoas se recuperam 100%, diferente de outras doenças que deixam sequelas. Claro que muita gente morre, principalmente de algumas doenças, mas o fato é que é um aprendizado muito grande aqui no HSJ.

Dra. Tânia – Como a experiência no HSJ tem transformado sua vivência em relação ao contato com o outro?

Dr. Anastácio – Uma coisa que eu aprendi na Medicina, que é algo que eu digo muito para os estudantes, é que nós somos profissionais que temos a chance de ajudar as pessoas e eu acho que quando você ajuda, você é ajudado. É muito bom ajudar as pessoas. 

Infelizmente tem muito sofrimento, as pessoas chegam com muita dificuldade. Não só gente humilde, mas também gente de posse. Eu atendia um advogado que precisou rodar muito até chegar aqui no HSJ. As pessoas confiam no hospital, aí ele veio para o meu ambulatório. Ele tem uma tuberculose cutânea, tem duas úlceras na perna, um rapaz jovem, ele está há 17 meses rodando e veio para cá. São muitos casos e a gente acaba aprendendo muito.

Dra. Tânia – Doutor, nós devemos grande parte da credibilidade do HSJ ao senhor…

Dr. Anastácio – A todos nós!  

Dra. Tânia – Quando se fala em HSJ, o senhor é a primeira pessoa que vem na cabeça das pessoas. Sempre acontece… ‘Dr. Anastácio ainda está por lá?’, sempre perguntam...

Dr. Anastácio – É que eu sou muito antigo... (Risos) Eu vi desaparecer daqui a poliomielite, eu vi desaparecer praticamente a raiva, o tétano, o sarampo… Eu vi chegar a AIDS… Nos primeiros casos de AIDS, tudo era muito difícil. Eu abria tórax para fazer biópsia pulmonar e para tirar pedaço do fígado, porque a patologia não queria.

Eu lembro que a gente apresentou até o primeiro trabalho com o tema num congresso, aí perguntaram por que a gente estava apresentando os casos todos de São Paulo, porque os pacientes estavam todos vindo de SP. Em todo canto, o pessoal tinha muito medo, como em todas as doenças novas. 

Você vê que, com o coronavírus, todo mundo trabalhava de face shield, mas é que as doenças infecciosas deixam as pessoas com medo... E as pessoas ainda têm medo do São José, né? O medo não é do hospital, mas é das doenças… Mas acho que é muito gratificante estar aqui, pois é um hospital em que a gente aprende muito e as pessoas são muito gratas. Os pacientes trazem as coisas que eles nem têm para a gente. Eu já recebi tudo. Já ganhei até um tatu morto temperado (Risos). Deu vontade de dizer: ‘Por que você matou o bichinho?’’. Trazem dúzias de ovos, tem gente que traz caixa de bananas no ônibus, traz castanha, as pessoas são muito gratas.

Eu me sinto muito grato por trabalhar no Hospital São José. É um aprendizado diário. Todo dia eu vejo coisas que eu não tinha visto. Tem as pessoas, os colegas todos. Eu gosto muito do grupo todo daqui.

Dra. Tânia – Qual é o maior desafio ao lidar com o estigma em torno do diagnóstico da AIDS?

Dr. Anastácio Teve muito problema. Eu me lembro que a gente se reuniu várias vezes com hospitais privados. Sobre a AIDS, eu ouvia assim dos gestores: ‘Quando a sociedade aceitar bem, a gente interna’. Eu achei engraçado. A gente não ia internar nunca. Era muito difícil, o doente se internava na enfermaria e ninguém queria se internar. Hoje não, melhorou mais, as pessoas dividem a enfermaria sem problema, mas assim mesmo ainda tem muita discriminação.

Dra. Tânia – No caso da Covid-19, qual o maior ensinamento que o senhor extrai da pandemia? 

Dr. Anastácio Pela própria maneira como progrediu, a doença deixou todo mundo muito assustado, mas eu entendo que não devemos ter disputa entre colegas médicos. Houve muito acirramento de colegas defendendo uma coisa ou outra. Isso eu jamais tinha visto. Tanto que acabou que grandes revistas cometeram erros. Revistas como New England e The Lancet publicarem coisas que a gente percebeu que só foram publicadas porque tinha dinheiro envolvido. Depois elas se retrataram. 

Eu procurei acompanhar a literatura sobre Covid-19, desapaixonadamente, eu sei que houve muitos questionamentos com a hidroxicloroquina, por exemplo, mas tudo foi muito complexo.

Dra. Tânia –  Dr. Anastácio, o São José completa 50 anos em 2020. O senhor acha que a gente teve muitos avanços? Qual avaliação o senhor faz?

Dr. Anastácio O São José foi o primeiro hospital no Ceará que criou esse espírito do voluntariado. As pessoas faziam seleção aqui dia de sábado para trabalhar de graça e isso se disseminou no Estado. Isso nunca tinha sido feito. O hospital é um exemplo de humanização. 

Mas é preciso que o São José receba um pouco mais de atenção. O que o HSJ precisa é tão pouco e as pessoas já são tão encantadas com o hospital. É claro que todo hospital tem problemas, mas existe esse encanto. 

Dra. Tânia – O senhor acha que o diferencial do São José são as pessoas?

Dr. Anastácio – Indiscutivelmente. Acredito que trabalhar com pacientes que, para muitas outras pessoas, representam um risco para a vida delas torna as pessoas diferentes… O pessoal de outras especialidades tem muito medo. Aqui é mais difícil de você ter medo, pois ou você fica aqui ou não fica.

Mas com o Covid-19 foi aquela coisa que assustou. É uma doença que teve muito óbito no mundo todo e ainda hoje estamos vivendo essa perspectiva de que a doença ainda está muito presente. É muito ruim. Criou-se muito esse pânico que todo mundo morria e realmente muita gente morreu.

Dra. Tânia – Falando agora um pouco da sua família, como ela se integra a sua vida profissional?

Dr. Anastácio – Acho que a minha mãe, que agora está com 89 anos, aceitou muito bem. Em casa, com os meninos, também está tudo bem, mas nenhum dos meus filhos quis fazer Medicina. A minha menina agora tá estudando, quer fazer Medicina depois de muitos anos. Uma coisa que eu falo sempre é que você tem que influenciar seus filhos, sem puxar… A gente deixa escolher. O meu filho gosta muito de eletrônica. Ele fez Engenharia Mecânica. Conserta tudo, relógio, rádio, impressora. É impressionante, ele faz tudo!

É claro que, às vezes, é um pouco complicado o cotidiano do médico para família, porque com a Medicina a gente se envolve. Agora, com o coronavírus, o telefone não pára, só atendendo as pessoas, é uma loucura, o WhatsApp não para. É toda hora, mas a gente se habitua.

Dra. Tânia – Qual o hobby que o senhor possui que não tem relação com o seu trabalho?

Dr. Anastácio – O Hobby que eu tenho é a fotografia, mas fotografo muito o que tem relação com o meu trabalho. Eu tenho um filme gravado sobre tétano, que já passei para o meio digital, é muito interessante. Tenho um filme de raiva feito em câmera super 8. Mas claro que eu tenho uns projetos para fotografia de outras coisas. Já fiz muita fotografia de natureza. Tem várias coisas de fotografia que eu não concluí. Uns projetos assim fora da Medicina. Eu tenho vontade de escrever um livro sobre o Santo Sudário. É uma das leituras mais impressionantes da minha vida. Todos os indivíduos que começaram a estudar o Sudário não pararam. É muito interessante, o Sudário é autêntico. Tenho muita documentação sobre esse assunto, já dei aula para amigos médicos, para membros da Academia Cearense de Medicina. Tem até uma comunidade que, a cada três meses, eu dou uma palestra  

Eu gostaria de ler mais, principalmente a bíblia. Eu tenho ela perto, mas eu leio menos do que eu deveria. Realmente eu sou aquela pessoa ainda muito ligada à Medicina. Agora olhando para trás, tem dois livros que eu li que ainda hoje acho interessante falar. Um é Olhai os Lírios do Campo, romance do Érico Veríssimo. O outro é A Cidadela, um romance escrito por Archibald Joseph Cronin, em 1937. É um livro muito interessante, que eu li muito jovem, mas ainda hoje eu gosto. A leitura enriquece muito a gente.

Agora de série… Grey’s Anatomy eu não assisto (Risos).  Tem aquele Dr. House, mas eu não gosto daquele cara (Risos). Ele é grosseiro. Não tem nenhuma série assim ou filme que me marque. Eu sou muito complicado com isso.

Dra. Tânia – O senhor tem uma relação muito profunda com a Igreja Católica. Essa profundidade aumentou ao longo dos anos?

Dr. Anastácio – Minha família toda é católica. Minha mãe escolheu meu nome em homenagem a um frade chamado Frei Anastácio, que tinha na cidade onde nasci no Interior. Eu quis até entrar no seminário, mas não deu certo. Depois, quando eu entrei na faculdade de Medicina, ficou difícil fazer outra coisa que não fosse estudar. Aí depois, quando estava na Sesa, foi do mesmo jeito, tempo muito corrido. Mas, com o tempo, minha mulher começou a frequentar o Instituto Hesed e, a partir disso, comecei a ler sobre o Sudário. 

Eu acredito na criação e acredito na evolução. Eu realmente acredito que existe um ser superior. Acredito que Jesus Cristo viveu. Não tenho dúvida na minha concepção. O Sudário é a maior prova disso. Você lendo sobre o Sudário de modo aprofundado, você acredita mesmo. São muitos milagres. Para algumas pessoas, são só coincidências, mas são muitas coincidências. Algumas pessoas ligam e dizem: ‘Dr. Anastácio, eu rezo para o senhor todos os dias’. Eu acho excelente. Todas as coisas que têm acontecido só tem dado certo, então eu não tenho nada o que reclamar. Trabalho aqui e todo mundo ajuda, muitos colegas, todos cooperativos, é um ambiente que considero nota 10. Eu acredito em Deus, quero escrever meu livro sobre Sudário e conhecer mais a Bíblia. 

As pessoas são muito gratas. Às vezes, alguém me para e diz ‘olha, esse aqui é o doutor que salvou meu filho!’. Isso deixa a gente um pouco constrangido, mas mostra a gratidão das pessoas.

Dra. Tânia - O senhor acha que a maior qualidade do ser humano é a gratidão?

DR. Anastácio – Sem dúvida. Mesmo as pessoas que agradecem pouco, mas tem aquele sentimento. Você pode passar cinco anos sem ver a pessoa, mas você sempre lembra. Tem gente que nunca dá notícia, mas não é que a pessoa não foi grata, são os hábitos que a gente tem. Você sempre tem que achar que as pessoas são boas, pois, dessa maneira, você termina mandando uma mensagem positiva mesmo que ela não seja.

Eu sou uma pessoa que conseguiu muito na vida trabalhando demais. Tenho esse número de telefone desde 1995 e eu nunca desligo. Se você ligar pra mim, pode ser quem for, eu ligo de volta. Eu sempre dou um retorno. É um hábito meu, porque se eu começar não atendendo fulano de tal porque não é meu amigo, eu vou acabar não atendendo você, que é meu amigo. 

Enfim, sou muito grato e me considero um homem de sorte.