Autores: Ricardo Coelho1, Lisandra Damasceno2 e Melissa Soares Medeiros3

1. Médico Pneumologista do Hospital São José e Coordenador do CEAP (Centro de Ensino, Aperfeiçoamento e Pesquisa)

2. Médica Infectologista do Hospital São José. Professora e Pesquisadora do Departamento de Saúde Comunitária da UFC

3. Médica Infectologista do Hospital São José. Professora e Pesquisadora do Departamento de Infectologia da Unichristus

 

Desde dezembro de 2019, o mundo vem aprendendo a lidar com uma nova infecção respiratória, conhecida como Doença do novo coronavírus (COVID-19). Inicialmente, foi diagnosticada na China, como uma pneumonia de causa desconhecida que levava à Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG). Em pouco tempo, já sabíamos que o agente causador desta nova doença se tratava de um RNA vírus, identificado como SARS-CoV-2, que rapidamente se disseminou entre os trópicos. 

No Brasil, tivemos o primeiro caso confirmado de COVID-19 em fevereiro de 2020. Claramente havia um potencial devastador da pandemia mundialmente, devido ao adoecimento em grande escala da população, refletindo de forma contundente nos sistemas de saúde e na economia dos países afetados. O conhecimento prévio sobre outros coronavírus que atingiram o mundo nos anos de 2002 e 2012, como o SARS-CoV e o MERS, nos possibilitou entender precocemente, o modo de transmissão da doença; o alto poder  de transmissibilidade do vírus; o potencial de causar doença grave; e os desafios dos cuidados intensivos que as equipes de saúde teriam pela frente. 

No Ceará, os primeiros casos começaram a ser investigados em março, inicialmente em hospitais privados que atendiam população que retornava de viagens para São Paulo, onde se detectaram os primeiros casos, e do exterior. Com diferença de poucas semanas o sistema público começou a internar seus pacientes com Covid-19. Inicialmente, tínhamos uma grande dificuldade para realizar o diagnóstico, pois apenas o LACEN estava fazendo pesquisa molecular para detectar o novo vírus. Em sendo assim, as pessoas aguardavam cerca de 15 dias para receber o diagnóstico definitivo, o que prejudicou o isolamento inicial de casos suspeitos. Ao longo dos meses, os laboratórios públicos e privados desenvolveram metodologias de diagnóstico mais rápidas e inclusive sorológicas para confirmação de casos retrativos. Com a maior velocidade nos resultados foi possível tecer estratégias de prevenção e isolamento. Definitivamente este vírus nos pegou desprevenidos, mas as medidas de controle e que exigem mudanças de hábitos também. Como num filme de ficção científica, a população se viu em isolamento e lockdown, onde o medo e as incertezas se proliferavam junto com esse novo vírus.

As observações vivenciadas a beira-leito e os dados científicos publicados foram essenciais para o manejo e condução da COVID-19, uma doença com índices elevados de letalidade. Por se tratar de doença respiratória aguda altamente transmissível, os grandes desafios para toda a equipe de saúde e gestores, foram absorver uma grande demanda de pacientes que requeriam suporte ventilatório ao mesmo tempo; o manuseio adequado e o aumento do número de equipamentos para pacientes críticos; a adequação da estrutura física da instituição; a capacitação técnica das equipes multiprofissionais de saúde para lidar com estes pacientes; as mudanças de fluxo e de perfil de pacientes dentro do próprio hospital; e o isolamento dos pacientes de seus familiares. 

A COVID-19 leva a várias disfunções orgânicas, sendo a disfunção respiratória a principal, que ocorre devido a mecanismos fisiopatológicos como a hipóxia silenciosa, a microtrombose e reação inflamatória sistêmica desregulada. Os pacientes com fatores de risco como diabetes mellitus, obesidade, doenças pulmonares prévias e doenças cardiovasculares têm mais chance de ter uma evolução desfavorável. Logo, o suporte avançado de vida aos doentes mais críticos e o tratamento das complicações devem ocorrer de forma mais precoce e efetiva. Apesar do nosso conhecimento prévio sobre a síndrome do desconforto respiratório do adulto (SDRA) em terapia intensiva, hoje sabemos que a COVID-19 é uma doença específica, com características distintas, onde geralmente os pacientes apresentam hipoxemia grave, frequentemente associada à complacência quase normal do sistema respiratório. Uma associação rara na SDRA clássica. 

Sabe-se que os sinais de hipoxemia podem se apresentar de formas variadas. O paciente pode encontrar-se eupneico, taquipneico ou francamente dispneico; normocapênico ou hipo/hipercapênico; e responsivo ou não à manobra de recrutamento alveolar. Padrões diferentes quanto à complacência pulmonar têm sido observados. Perfis fenotípicos distintos foram descritos, como o tipo I (baixa elastância e alta complacência), onde há baixa capacidade de recrutamento alveolar; e tipo II (alta elastância e baixa complacência), caracterizado por alto shunt direito-esquerdo, onde há claro benefício das manobras de recrutamento (perfil compatível com a SDRA clássica). 

Um capítulo à parte foi o manuseio da hipoxemia. Em virtude da preocupação pertinente em relação ao risco de contaminação da equipe, a escolha inicial por dispositivos que ofertassem oxigênio com baixo fluxo reduziu as opções basicamente ao cateter e à máscara de reservatório e levou a um número elevado de intubações traqueais e suporte ventilatório invasivo, nem sempre disponíveis em quantidade adequada nas unidades de saúde. À medida que fomos consolidando o conhecimento dos principais mecanismos de contágio e tendo mais segurança no manuseio dos pacientes, suportes como sistema de Venturi, ventilação não invasiva e oxigênio nasal de alto fluxo foram incorporados ao arsenal e puderam, pelo menos em parte, reduzir o número de assistências ventilatórias invasivas e suas complicações.

Outro aspecto interessante foi o pouco comprometimento das vias aéreas inferiores que a infecção pelo SARS-CoV2 exibiu, em comparação a outros vírus respiratórios como o sincicial e o rinovírus. Quadros graves de broncoespasmo na fase aguda da doença foram pouco frequentes e mesmo pacientes portadores de asma ou doença pulmonar obstrutiva crônica que estavam com sua doença controlada não parecem ter tido um desfecho mais desfavorável com relação ao controle de seus sintomas obstrutivos. Uma discussão que se abre a respeito desse tema e que ainda não tem uma resposta definitiva é a possibilidade do corticoide inalatório, que muitos pacientes com esse perfil utilizavam, ter sido um fator protetor.

Diante dos desafios já citados, as equipes de saúde, aprenderam progressivamente qual a melhor estratégia de tratamento para estes pacientes, e hoje reconhecem que a ventilação mecânica invasiva (VMI) deve ser bem indicada no momento apropriado. Um dos grandes desafios foi estabelecer a melhor conduta em termos de suporte ventilatório não invasivo (VMNI). Inicialmente, o uso de cateter nasal com até 5-6 L/min de oxigênio não umidificado foi amplamente utilizado. Os demais tipos de suporte não invasivo não eram indicados devido ao risco de geração de aerossóis e exposição dos profissionais de saúde. Entretanto, indo de encontro aos conhecimentos adquiridos progressivamente com esta nova doença, protocolos para uso de cânula nasal de alto fluxo de oxigênio (CNAF) e VMNI, foram estabelecidos com segurança, e atualmente são utilizados de acordo com o perfil de SDRA do paciente.   

Outra estratégia já utilizada como terapia adjuvante de recrutamento alveolar em pacientes com SDRA grave em VMI, a posição prona, foi adaptada para a forma espontânea, de acordo com os diferentes perfis de SDRA. Usualmente esta estratégia é utilizada no contexto da terapia intensiva, onde o paciente precisa estar sedado e em uso de bloqueador neuromuscular, para garantir uma sincronia com o respirador mecânico. Na COVID-19, a posição prona espontânea vem sendo bastante utilizada em pacientes com SDRA leve a moderada, com resultados satisfatórios, demonstrados pela melhora da saturação de oxigênio após uma hora, e diminuição do risco de entubação. Destaca-se aqui o papel das equipes de fisioterapia como fundamental para o sucesso desta estratégia, e consequentemente para a recuperação dos pacientes.  

A pandemia pelo SARS-Cov2 deixou bem claro para todos nós que amamos a ciência e nela procuramos trilhar nossos caminhos que, diante de um agravo novo, precisamos mais ainda mergulhar no entendimento da fisiopatologia das doenças e dos fenômenos a ela associados, priorizando as evidências científicas, disseminando essa prática nos centros formadores de profissionais de saúde e evitando o caminho fácil da abordagem baseada simplesmente no tratamento de sinais e sintomas. 

No contexto da pneumologia tivemos um bom exemplo disso.  A observação de um número expressivo de casos de Covid-19, onde as queixas habituais de tosse produtiva e dispneia não eram relevantes e a radiografia de tórax exibia pouca ou nenhuma alteração, a despeito de intenso comprometimento pulmonar evidenciado nas imagens tomográficas e na queda da oxigenação, nos mostrou um cenário completamente novo e atípico de pneumonia. 

Esse aspecto, associado à análise criteriosa dos cortes tomográficos que detectavam a presença de vasos sanguíneos dilatados mesmo nas áreas de consolidação; o estudo da mecânica respiratória nos pacientes em ventilação invasiva que, em alguns casos, mostravam pulmões com complacência preservada a despeito de hipoxemia crítica e os achados de necrópsia nos pacientes que infelizmente faleceram, que identificavam coágulos na circulação pulmonar não percebidos nos exames de imagem, lançaram luz sobre um quadro novo onde os fenômenos trombóticos na microcirculação pulmonar e a perda do controle da vasoconstrição hipóxica poderiam predominar sobre a doença alveolar propriamente dita.

 

A infecção respiratória pelo SARS-Cov2 passou a exibir uma heterogeneidade de apresentações clínicas que, somado ao fato da ausência de uma droga antiviral comprovadamente eficaz, tornou a abordagem dos pacientes desafiadora, pois mesmo medidas de suporte clínico precisavam ser individualizadas de acordo com o tempo de evolução e o quadro fisiopatológico predominante.

Aprendemos nessa pandemia que a monitorização laboratorial seriada de indicadores inflamatórios, principalmente a partir do final da primeira semana de doença, o uso rotineiro da oximetria de pulso e a avaliação presencial mesmo nos casos onde as queixas respiratórias não eram intensas, foram armas fundamentais na detecção precoce de uma deterioração clínica e no estabelecimento de um protocolo de conduta, que induziu além do uso de corticoides no momento apropriado e a exclusão de drogas ineficazes em reduzir a replicação viral, a oferta de oxigênio de forma mais adequada. 

Aprender foi a palavra que definiu essa pandemia. Infelizmente, muitos avanços se depararam com a tentativa e o erro no avanço constante para encontrar uma cura para essa nova doença. Reflete-se esse preceito nos inúmeros tratamentos propostos e resultados desapontadores. Podemos definir as fases de tratamento como ondas, pois surgiam com enorme euforia, atingiam picos imensuráveis na mídia e na população que corria para as farmácias ao primeiro sussurro de tratamento, e se quebravam na decepção pelos estudos científicos que evidenciavam sua ineficácia. Como se tratava de uma doença viral iniciamos o ano tentando utilizar uma medicação que era usada para influenzae, o oseltamivir, que se mostrou ineficaz por completo. Houve uma grande euforia com a possibilidade de cloroquina e hidroxicloroquina, medicações de ampla utilização para malária e doenças reumatológicas crônicas. A cada semana um estudo científico falava contra ou a favor, se alternando como uma enorme gangorra. Na tentativa de reduzir a doença inflamatória gerada pelo vírus na segunda semana, muitos pacientes utilizaram essas medicações, mesmo com riscos de arritmia e complicações. Porém, estudos com maior robustez acabaram por demonstrar sua ineficácia, como o RECOVERY. Aqueles que se sentiam melhor na sua utilização experimentavam o velho efeito tonificante do quinino, que em conjunto com questões políticas, levou a sua utilização em massa. Terminada essa onda, iniciou-se a dos antiparasitários. Nem mesmo Monteiro Lobato poderia prever uma campanha tão forte para extermínio dos parasitas intestinais durante a pandemia. Alternando entre Ivermectina e Nitazoxanida, a população realizou vermifugação disseminada. O que talvez ajude não apenas para evitar disseminação de parasitas, como estrongilóides, com uso de corticosteroides, mas também ajuda na redução da translocação bacteriana que contribui fortemente para os processos inflamatórios. Eis que surge a onda dos corticosteroides, que dentre tantas opções, ainda mostra eficácia na sobrevida principalmente de pacientes com infecção moderada a grave, que necessitam de suporte ventilatório, segundo o RECOVERY. Embora, mesmo surfando esta onda, ainda existem altos e baixos, quando a dose certa ainda varia de acordo com protocolos de diferentes instituições. Não podemos esquecer dos anticoagulantes, que passaram a fazer parte das prescrições na internação e também em consultórios, tentando evitar os fenômenos trombóticos consequentes a inflamação exagerada. 

Em se tratando de hospital de referência em tratamento de pacientes com HIV/Aids, também passamos pela incerteza se estes teriam quadros mais graves ou leves. A onda flutuou entre a possibilidade de quadros mais graves pela imunodeficiência que deixariam nossos pacientes mais susceptíveis, principalmente aqueles com CD4 baixo. Ou se estes responderiam melhor pela impossibilidade de gerar resposta inflamatória exacerbada e uma possível proteção dos antirretrovirais. Em nossa pequena comunidade não detectamos casos mais graves, porém trabalhos com coorte de pacientes bem maiores, como na África e Nova York, evidenciaram risco elevado de complicação nos pacientes soropositivos com maior mortalidade. Quanto a proteção dos antirretrovirais, os estudos ainda são inconclusivos até o momento. 

Para o futuro, uma questão relevante a ser avaliada será a intensidade e a persistência ou não das sequelas pulmonares estruturais e funcionais apresentadas pelos pacientes com formas mais graves da doença. Estudos comparativos das epidemias por SARS-CoV, MERS e H1N1 sinalizam que as alterações funcionais são frequentes mas podem ser transitórias, tendo a reabilitação pulmonar um papel fundamental neste processo.

Durante esse ano aprendemos que esses pacientes mais complicados precisam de um acompanhamento a longo prazo. Infelizmente, essa infecção viral não se comporta como a maioria das viroses respiratórias que curam sem deixar sequelas após 14 dias. O ambulatório de retorno, criado pelo hospital São José, vem realizando consulta e acompanhamento dos pacientes pós alta. Ainda se evidencia principalmente sintomas como: tosse seca persistente, cansaço aos pequenos e médios esforços, taquicardia, alterações de pressão arterial e glicemia, dores articulares e sintomas neuropsiquiátricos. Além de pacientes que persistem por longos períodos com distúrbios da coagulação. O acompanhamento de exame clínico e laboratorial nos levará a elucidar mais ainda as limitações e sequelas deixadas por esse vírus. 

Portanto, os aprendizados desta pandemia com pacientes criticamente enfermos têm sido muitos. O manejo da disfunção respiratória dos pacientes com suporte avançado de vida ganhou um novo conceito, sendo fundamental a capacitação dos profissionais de saúde em tempo recorde para suprir todos esses desafios, e tomadas de decisões, de acordo com as evidências científicas que vão surgindo.

Que as lições, bem como as cicatrizes, deixadas por essa pandemia, possam trilhar nossas atitudes e experiências para o futuro. Esperamos que a mudança de hábito como higienização das mãos e ambiente, distanciamento social e utilização de máscara se tornem uma nova atitude entre a população, para proteção do outro e findando por salvar vidas. 

Por fim, uma doença nova com evolução temporal tão peculiar, onde mesmo quadro leves no início poderiam resultar em explosões inflamatórias e de coagulação tão intensas a médio prazo, acrescentou um toque dramático ao roteiro dessa pandemia e trouxe para todos nós, além de toda a dor e sofrimento pela perda de tantas vidas, um nível de ansiedade como poucas vezes havíamos experimentado.