MYOCARDITIS IN A PATIENT WITH SARS-COV-2 INFECTION: CASE REPORT AND LITERATURE REVIEW
Luis Arthur Brasil Gadelha Farias¹
¹Residente de Infectologia pela Escola de Saúde Pública do Estado do Ceará (SESA) no Hospital São José de Doenças Infecciosas (HSJ).
INTRODUÇÃO
A doença do novo coronavírus, também conhecida como COVID-19, é causada pelo vírus SARS-CoV-2, um betacoronavírus RNA, de provável origem zoonótica isolado inicialmente na cidade de Wuhan, na China.1 A doença caracteriza-se clinicamente pela presença de sintomas gripais, porém, em pacientes com comorbidades ou idade avançada, pode ser responsável pela síndrome respiratória aguda grave (SRAG) que pode evoluir ao óbito.2 A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou pandemia global pelo COVID-19 em 11 de Março de 2020.3 Até 26 de Setembro de 2020, havia o registro de mais de 32 milhões de casos confirmados, com mais de 970 mil óbitos pela doença no mundo.4 No Brasil, até 26 de Setembro de 2020, foram registrados 4.718.115 casos, com 4.050.837 recuperados e 141.441 óbitos.5
Com o aumento do número de casos confirmados e o acúmulo de dados clínicos, além da apresentação clínica comum da insuficiência respiratória causada pelo SARS-CoV-2, as manifestações cardiovasculares induzidas por essa infecção viral têm gerado preocupação considerável. Uma miríade de manifestações cardiovasculares relacionadas à COVID-19 têm sido descritas como arritmias, insuficiência cardíaca aguda, síndrome coronariana, miocardite, pericardite, tamponamento cardíaco e morte súbita.
O presente trabalho objetiva relatar o caso de um paciente do sexo masculino que evoluiu com quadro compatível com miocardite relacionada à COVID-19, discutindo os principais achados e atualizações no que tange às manifestações cardíacas pela infecção do SARS-CoV-2 descritas na literatura. O estudo foi conduzido através da revisão de prontuário, e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital São José de Doenças Infecciosas (HSJ) (CAAE 35017820.1.0000.5044).
RELATO DO CASO
Homem, 50 anos de idade, natural e procedente de Fortaleza-CE, com história prévia de Hipertensão Arterial Sistêmica (HAS), deu entrada na emergência de um hospital de doenças infecciosas apresentando febre, calafrios, odinofagia, mialgia, tosse seca e dispneia progressiva há aproximadamente 10 dias. Exame físico admissional revelou a presença de crepitações pulmonares bilaterais com saturação de oxigênio (SpO2) de 93% em ar ambiente, com frequência respiratória de 26 irpm. Demais aspectos do exame físico sem alterações. Tomografia computadorizada (TC) de tórax revelou a presença de opacidades em vidro fosco periféricas, principalmente em bases, acometendo 25-50% dos campos pulmonares. Exames como hemograma, coagulograma, dosagem sérica de lactato desidrogenase (LDH), D-dímero, transaminases, escórias nitrogenadas e sumário de urina estavam normais. Proteína C reativa (PCR) encontrava-se elevada (35mg/L). Troponina à admissão foi negativa. Não havia alterações ao eletrocardiograma (ECG). VDRL, sorologias para HIV, hepatite B e C foram negativas. Reação em cadeia da polimerase de swab nasofaríngeo resultou positivo para SARS-CoV-2.
Durante o internamento, o paciente evoluiu com dispneia, necessitando de oxigênio suplementar por cateter nasal (2 L/min) a fim de manter uma SpO2 acima de 94%. Dexametasona 10 mg/dia foi usado durante cinco dias, associada à terapia antiparasitária. No 7º dia de internamento hospitalar (DIH), o paciente apresentou piora súbita da dispneia e sinais de congestão pulmonar. Nova TC de tórax com contraste, doppler de membros inferiores e novo D-dímero estavam sem alterações. Novo ECG (figura 1) revelou hipertrofia de átrio esquerdo. Ecocardiograma transtorácico (ECOTT) revelou fração de ejeção de 24%, com hipocinesia do ventrículo esquerdo, insuficiência tricúspide, aórtica e mitral leves. Nova troponina revelou-se positiva. Paciente evoluiu com melhora após introdução de terapia com caverdilol 37,5mg/dia, espironolactona 25mg/dia e enalapril 40mg/dia. Terapia antimicrobiana com piperacilina-tazobactam foi iniciada devido à suspeita de pneumonia bacteriana secundária, porém utilizada em um tempo curto, após o diagnóstico da miocardite. No 10º DIH, paciente recebeu alta hospitalar assintomático para acompanhamento ambulatorial e realização de ECOTT de controle.
DISCUSSÃO
COVID-19 é uma nova entidade clínica que pode acarretar quadros graves, principalmente de cunho respiratório, com potencial para o óbito.1,2 No entanto, outros órgãos e sistemas também podem ser acometidos, como o sistema nervoso central, cardiovascular, cutâneo e renal. Shi et al. descreveu em estudo com 416 pacientes hospitalizados a presença de lesão cardíaca em 82 pacientes, com maior mortalidade nestes pacientes neste grupo de pacientes (51,2% vs. 4,5%; p < 0,001).
Miocardite infecciosa é uma condição potencialmente letal que pode estar relacionada a causas infecciosas e não infecciosas. Dentre as infecções virais, as causas mais comuns são os adenovírus (A 1, 2 ,3, e 5), eritrovírus [1 (B19V) e 2], herpes vírus humano 6 A/B, citomegalovírus, Epstein-Barr, varicella-zoster, HIV, coxsackie A e B, ecovírus, poliovírus, vírus da hepatite, influenza, vírus sincicial respiratório, vírus da rubéola, dengue e febre amarela. Cerca de 32 casos de miocardite relacionada à infecção pelo SARS-CoV-2 já foram descritos desde o início da pandemia. A tabela 1 revela o perfil demográfico, método diagnóstico e desfecho dos casos de miocardite associada ao COVID-19 relatados na literatura.
Zeng et al. publicaram um relato de caso em um paciente de 63 anos com COVID-19, que apresentava na admissão sinais de pneumonia, e sintomas cardiovasculares, com troponina I elevada, discinesia miocárdica difusa, e diminuição da fração de ejeção do ventrículo esquerdo ao ecocardiograma, semelhante ao caso relatado no presente estudo. Em apenas um caso publicado na literatura foi possível a realização de biópsia do miocárdio que foi compatível com miocardiopatia de origem viral, com RT-PCR positivo para SARS-CoV-2 no tecido cardíaco. Outros casos descritos revelaram a extensão do acometimento cardíaco até o pericárdio, causando complicações como tamponamento cardíaco. Exames tomografia computadorizada cardíaca ou a ressonância magnética são recomendados para uma melhor avaliação do acometimento miocárdico.
No caso clínico aqui relatado, o diagnóstico foi dado baseado nas manifestações clínicas, positivação da troponina durante o internamento e alteração miocárdica evidenciada no ECG e ECOTT, com reversibilidade do quadro após terapia específica para disfunção miocárdica. Ressonância magnética ou tomografia cardíaca não estavam disponível em nosso serviço. Hussain et al. também relataram um caso de miocardite relacionada à COVID-19 com o diagnosticado baseado apenas nas alterações clínicas, das enzimas cardíacas e eletrocardiográficas. Outros autores descreveram casos de miocardite associada à infecção pelo SARS-CoV-2 baseado apenas nas manifestações clínicas, e nas alterações observadas no ECG e ECOTT.
A fisiopatologia do envolvimento miocárdico na COVID-19 ainda não está bem esclarecida. Acredita-se que um aumento no estresse cardíaco devido à insuficiência respiratória e hipoxemia possam estar relacionados, bem como a ocorrência de síndrome coronariana aguda, lesão indireta por resposta inflamatória sistêmica e infecção direta do miocárdio por SARS-CoV-2.
Portanto, as complicações cardíacas graves da COVID-19, como miocardite e insuficiência cardíaca, devem sempre ser monitoradas, já que esta complicação tem sido cada vez mais observada nos pacientes com infecção SARS-CoV-2. Este é o primeiro caso descrito no Ceará de miocardite infecciosa associada à infecção por SARS-CoV-2. Mais estudos são necessários para compreender os aspectos clínicos, fisiopatológicos e tratamento da miocardite relacionada à COVID-19.
REFERÊNCIAS
1. Huang C, Wang Y, Li X, Ren L, Zhao J, Hu Y, et al. Clinical features of patients infected with 2019 novel coronavirus in Wuhan, China. Lancet. 2020;395(10223):497-506. DOI: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)30183-5.
2. Zhou P, Yang XL, Wang XG, Hu B, Zhang L, Zhang W, et al. A pneumonia outbreak associated with a new coronavirus of probable bat origin. Nature. 2020;579(7798):270-3. DOI: https://doi.org/10.1038/s41586-020-2012-7.
3. World Health Organization (WHO). Discurso de abertura do Diretor-Geral da OMS na conferência de imprensa sobre COVID-19, realizada em 11 de março de 2020 [Internet]. Genebra: WHO; 2020; [acesso em 27 de Setembro de 2020]. Disponível em: https://www.who.int/es/dg/speeches/detail/who-director-general-s-opening-remarks-at-the-media-briefing-oncovid-19---11-march-2020.
4. World Health Organization (WHO). Coronavirus disease (Covid-19) pandemic [Internet]. Genebra: WHO; 2020; [acesso 27 de Setembro de 2020]. Disponível em: https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019.
5. Ministério da Saúde (MS). Covid-19 no Brasil [Internet]. Brasília: MS; 2020; [acesso 27 de Setembro de 2020]. Disponível em: https://susanalitico.saude.gov.br/extensions/covid-19_html/covid-19_html.html.